Método utiliza raios gama para curar (solidificar) resinas, que são impregnadas nas cavidades de peça em estado de deterioração
Técnica inovadora de consolidação para objetos de valor cultural que utiliza radiação ionizante a partir de uma resina radiocurável começa a ser testada no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen/Cnen) de forma pioneira no Brasil. O teste “piloto” será em uma escultura de São Jerônimo, do acervo do Museu do Palácio dos Bandeirantes, uma peça de 1,20m, que está em processo de deterioração, com diversos “orifícios” em toda a sua extensão.
A consolidação consiste na impregnação ou preenchimento dos espaços vazios dentro de uma escultura por uma resina e posterior cura, processo que dá uma ‘segunda vida’ ao objeto. O que é inovador, na recuperação da imagem de São Jerônimo, é o uso de uma resina radiocurável, ou seja, catalisada ou sensível à radiação, de maneira que a peça possa ser totalmente preenchida e depois restaurada.
O processo inicia-se com a análise do objeto mediante técnicas nucleares não destrutivas como são a radiografia e a tomografia. Uma vez verificado o problema, a escultura é colocada dentro de reator que utiliza vácuo inicialmente para impregnar os microporos da peça com a resina. Posteriormente, é aplicada pressão positiva utilizando nitrogênio gasoso por até 24 horas.
A etapa seguinte está relacionada à irradiação com raios gama no Irradiador Multipropósito de Cobalto-60, do Centro de Tecnologia das Radiações (Ceter) do Ipen/Cnen, processo que cura resina, fazendo com que o líquido passe ao estado sólido, de modo que a escultura seja consolidada.
Na sequência, os pesquisadores utilizarão técnicas de caraterização analítica como o imageamento – raios-x e tomografia – para conferir a efetividade do processo, verificando se os poros foram totalmente preenchidos pela resina. Finalmente, mas não menos importante, vem a restauração propriamente dita, que conta com a utilização de técnicas tradicionais para restituir a parte exterior do objeto.
A pesquisa
Para que estas etapas pudessem ser concretizadas, participaram Maria Aparecida de Pereira e Anderson de Jesus, alunos do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia Nuclear do Ipen, realizando uma série de pesquisas a fim garantir a produção de uma resina única e que atendesse todas as condições essenciais (processo reversível, caso necessário). O passo seguinte da equipe foi projetar o reator e utilizar as técnicas de imageamento para analisar o interior da escultura.
A equipe do Ipen/Cnen é composta pelo coordenador das atividades de pesquisa e aplicação relacionadas à preservação de objetos de patrimônio cultural com radiação ionizante e responsável pelo Irradiador Multipropósito de Cobalto-60, Pablo Vásquez, a pós-doutoranda Maria José Alves de Oliveira, os técnicos Vagner Fernandes, José Aparecido Nunes e Edmilson Carneiro, e o responsável pelo apoio administrativo, Juan Santos.
Também participa do projeto a restauradora-conservadora do Museu do Palácio dos Bandeirantes, Adriana Pires. Vásquez e Pires estão à frente da parceria de mais de dez anos entre os dois órgãos, para restauro de obras e conta com o apoio da Curadora do Acervo Artístico – Cultural dos Palácios de Governo de São Paulo, Ana Cristina Carvalho. Eles discutiram a ideia dessa iniciativa, pela primeira vez, durante um simpósio realizado no Ipen/Cnen, em 2019.
“Eu vi essa técnica na França e então lembrei que tínhamos essa escultura. Já havíamos tido muitas perdas. Ela foi comprometida estruturalmente e não conseguíamos, através dos nossos métodos, consolidá-la, para então poder finalizar o restauro. Quando fui convidada pelo Pablo para o simpósio, falei sobre esse trabalho”, relembra Pires.
Vásquez disse que, na época, o projeto teve seu início impossibilitado pela falta de recursos e estudos de referência. “Os alunos estavam apenas iniciando os estudos materiais e ainda não tínhamos as ferramentas nem as condições necessárias”, conta o pesquisador, que também faz questão de ressaltar a importância da parceria com o Palácio dos Bandeirantes.
“Se não fosse pela peça providenciada pela Adriana, não poderíamos ter realizado o nosso primeiro estudo em um objeto real. Não seria possível iniciar a pesquisa aplicada, inovadora, com testes em escala piloto”, salienta o pesquisador.
A importância dessa técnica está fundamentada na possibilidade de proporcionar uma “segunda vida” a um objeto de patrimônio cultural tangível cuja estrutura foi comprometida integralmente. “Foi muito degradado, seja por insetos ou pelo tempo, e estava repleto de porosidades. Não era possível sequer manipular o mesmo devido ao seu grau de fragilidade, e, se não fossem os métodos que estamos aplicando, continuaria se deteriorando”, afirma Vásquez.
A escultura que está sendo trabalhada é de São Jerônimo, conhecido por traduzir os primeiros livros da bíblia, do Hebraico para o Latim, e tem uma importância histórica para o Palácio dos Bandeirantes.
Dos testes ao restauro
Os estudos sobre a melhor fórmula para as resinas constituíram o início do projeto. A equipe realizou os testes para garantir a melhor mistura, em condições laboratoriais, e chegou a uma composição que une um polímero comercial com outro natural. A fórmula química da substância foi desenvolvida por Oliveira.
“No período da pandemia, fizemos experimentos preliminares para saber se o resultado seria o esperado, quando a resina fosse impregnada na escultura. O Pablo foi testando as condições de irradiação, enquanto fomos fazendo as caracterizações e selecionamos as fórmulas mais adequadas. Agora, a expectativa é muito boa e tenho certeza de que vai dar certo, pois já realizamos várias provas bem-sucedidas”, diz a pós-doutoranda.
A resina desenvolvida é uma das grandes novidades do estudo e possui três características imprescindíveis para a realização da técnica empregada. O primeiro requisito é que a substância possa ser curada pela radiação ionizante – capaz de passar do estado líquido para o sólido com a radiação gama. Isso possibilita a utilização do Irradiador Multipropósito de Cobalto-60 para promover a consolidação, tendo a vantagem de empregar apenas a radiação ionizante, sem necessidade de catalisadores ou reagentes químicos.
A segunda característica desejada é que a resina pudesse ser removida com solvente caso necessário (processo reversível). A última premissa era a propriedade da permeabilidade – facilidade da resina de percorrer no vácuo – para penetrar em todos os microporos da escultura.
Antes da execução do método empregado, a caraterização do objeto com técnicas analíticas, como a tomografia e os raios x é fundamental, permitindo o imageamento do objeto e a localização de cavidades e poros. Estas caracterizações foram realizadas no Hospital Universitário (HU) da Universidade de São Paulo (USP) e no Centro do Combustível Nuclear (Cecon) do Ipen.
Em etapa posterior, a peça foi submetida ao pequeno reator, desenvolvido sob medida para o projeto. O reator é capaz de criar um vácuo que força a entrada da resina nos microporos da escultura, que fica submersa na substância, dentro da estrutura assim como a indução de uma pressão positiva. O processo leva arredor 24 horas para ocorrer.
“O reator consegue controlar o vácuo e manter a escultura fixa, durante um determinado tempo, para que a resina consiga impregnar os microporos. Trata-se do método mais eficaz, porque as condições da pressão permitem que a resina penetre o objeto por completo. Em outras técnicas, é comum injetar as resinas a olho nu apenas utilizando uma seringa. Mas, nesses casos, preencheria apenas os microporos da superfície”, diz Vásquez.
A etapa seguinte é tratar a peça com raios gama no Irradiador Multipropósito de Cobalto-60. A irradiação solidificará a resina e consolidará a escultura. O tempo estimado para a duração dessa fase do projeto é de dois dias. “Este processo deve ocorrer de forma lenta, uma vez que a escultura não poderá ser exposta a altas taxas de dose de radiação devido ao fato de que a reação de cura é exotérmica. Esse cuidado é necessário porque a escultura conta com partes de madeira, que podem ser dilatadas com a liberação de calor que ocorre no processo”, explica.
Após a consolidação, o pesquisador do Ceter diz que a equipe utilizará novamente as técnicas de imagem para verificar se realmente todos os microporos foram preenchidos pela resina.
A última etapa, a do restauro, ficará a cargo de Pires, que utilizará as técnicas tradicionais para reconstituir a parte exterior da escultura. Ela explica que, para este procedimento, é necessário “dar algumas camadas de policromia, para completar alguns pedaços que estão faltando, e então a escultura estaria pronta para ser exposta novamente”. A restauradora diz que essa parte é um pouco mais demorada e deve levar cerca de três meses.
A equipe agradece a todos os envolvidos para que essa pesquisa pudesse ser realizada. Vásquez faz questão de nominar Claudio Campi de Castro, Wilma Monteiro Frésca, Antonio Carlos Gomes Junior, Marcelo Favero Fresqui, Elvis Aparecido de Camargo e Antonio Carlos Matioli, da Comissão de Ensino e Pesquisa do HU-USP /Comep – Comitê de ética em Pesquisa do HU, que viabilizaram a realização da tomografia digital.
Pela radiografia digital realizada no departamento Cecon- Ipen, Vásquez destaca o apoio da equipe do pesquisador Michelangelo Durazzo, com suporte do Felipe Bonito J. Ferrufino. Os agradecimentos são extensivos à Empresa Reichhold, representada pelo Cristian Lorenzetto Campos Technician Assistance, no Brasil, patrocinador e doador das resinas, a Carlos Alberto Zeituni, Samir Somessari e Margarida M. Hamada, gerentes do Ceter-Ipen, e à Agencia Internacional de Energia Atômica (AIEA).
A notícia foi publicada originalmente nos sites do Ipen/Cnen, onde estão disponíveis mais fotos, e da Cnen.
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Autor: Leonardo Novaes, estagiário (com supervisão)
Foto: Imagens de raio x / Crédito: Pablo Vásquez
Fonte: Assessoria de Comunicação Social do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen/Cnen)